Ano de 1500. Ainda não existia o dia do Índio.
O português Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil para tomar posse régia daquilo que já era conhecido antes dele, e que, por isso mesmo, dera ao mundo o Tratado de Tordesilhas.
Os Espanhóis engoliram o Tratado, não por ingenuidade ou ignorância, creio bem, mas por razões de Estado, o que compete aos historiadores esclarecer, esclarecer-nos, em particular a mim, que posso estar a ser ingénuo, ignorante, ou ambas as coisas.
Cabral chegou. Era Abril. Colocou padrão e mandou rezar missa.
A cruz dessa missa está guardada a recato na catedral de Braga, em Portugal. Apesar de pequena de dois palmos, enferrujada, sem valor estético, tentaram já roubá-la tanta vez pelo valor simbólico, que foi preciso mandar fazer uma réplica, a mesma que hoje se olha no museu da Sé de Braga.
Cabral chegou, mas não foi senhor absoluto, único, primeiro.
Aquela terra tinha dono, e nela tudo o que existia: as árvores, os pássaros, os frutos, as águas das cachoeiras, dos regatos, dos lagos, as águas dos rios largos e fundos como mares, mesmo as águas dos mares.
A terra tinha gente, gente que lá vivia antes de quaisquer pensadas Tordesilhas. Gente que amava, adorava a terra, as árvores, os pássaros, os bichos rastejantes, os gordos herbívoros, as feras medonhas, os peixes dos regatos, dos riachos, dos rios, das lagoas, dos mares.
A terra tinha gente com nomes de florestas, de luares, de marés, de flores e de águas.
Chegou Cabral e aquela gente ficou a chamar-se Índios.
Dos restos dos Índios que ainda há, cinco séculos depois, em 2006, em 19 de Abril, fez-se o dia do Índio no Brasil.
Celebrações fingidas, festas vazias, memórias perdidas, imitações vestidas de ridículo.
Estórias, muitas, poucas contadas, algumas apenas segredadas mas não menos reais como esta:
É órfã, é menina, é surda, é índia da etnia Apurinã.
Tem 9 anos.
Corre risco de vida.
Mora em Jaturana, uma comunidade do município de Manacapuru, a 120 quilómetros de Manaus, capital do Estado da Amazónia.
A sua família é uma irmã de 16 anos, já casada, e o cunhado.
Foi internada nos fins de Março com uma anemia aguda (é a fome no Brasil), uma pneumonia (as imunodeficiências crescem no Brasil), e malária grave (ainda há muita malária no Brasil).
Tem 9 anos, repito.
Foi internada numa maternidade pública porque, com os seus 9 anos, está grávida de 5 meses.
Não sabe, ou não quer dizer, quem é o pai do seu filho.
A deficiência auditiva e o desprezo social prejudicam a comunicação.
Dentro de um mês a gestação terá de ser interrompida por cesariana – o seu corpo de menina não suportaria o crescimento do feto.
Na cama da enfermaria do hospital, a índia menina brinca com uma boneca. Uma boneca pouco menor do que ela, pouco maior que o filho que traz no ventre e vai perder.
Um filho índio que nunca saberá quem foi Cabral, e que nunca dançará no dia do Índio, nos 19 de Abril. Tal como sua mãe, a indiazinha Apurinã de 9 anos.