CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quarta-feira, abril 19, 2006

NO DIA DO ÍNDIO

Ano de 1500. Ainda não existia o dia do Índio.
O português Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil para tomar posse régia daquilo que já era conhecido antes dele, e que, por isso mesmo, dera ao mundo o Tratado de Tordesilhas.
Os Espanhóis engoliram o Tratado, não por ingenuidade ou ignorância, creio bem, mas por razões de Estado, o que compete aos historiadores esclarecer, esclarecer-nos, em particular a mim, que posso estar a ser ingénuo, ignorante, ou ambas as coisas.
Cabral chegou. Era Abril. Colocou padrão e mandou rezar missa.
A cruz dessa missa está guardada a recato na catedral de Braga, em Portugal. Apesar de pequena de dois palmos, enferrujada, sem valor estético, tentaram já roubá-la tanta vez pelo valor simbólico, que foi preciso mandar fazer uma réplica, a mesma que hoje se olha no museu da Sé de Braga.
Cabral chegou, mas não foi senhor absoluto, único, primeiro.
Aquela terra tinha dono, e nela tudo o que existia: as árvores, os pássaros, os frutos, as águas das cachoeiras, dos regatos, dos lagos, as águas dos rios largos e fundos como mares, mesmo as águas dos mares.
A terra tinha gente, gente que lá vivia antes de quaisquer pensadas Tordesilhas. Gente que amava, adorava a terra, as árvores, os pássaros, os bichos rastejantes, os gordos herbívoros, as feras medonhas, os peixes dos regatos, dos riachos, dos rios, das lagoas, dos mares.
A terra tinha gente com nomes de florestas, de luares, de marés, de flores e de águas.
Chegou Cabral e aquela gente ficou a chamar-se Índios.
Dos restos dos Índios que ainda há, cinco séculos depois, em 2006, em 19 de Abril, fez-se o dia do Índio no Brasil.
Celebrações fingidas, festas vazias, memórias perdidas, imitações vestidas de ridículo.
Estórias, muitas, poucas contadas, algumas apenas segredadas mas não menos reais como esta:
É órfã, é menina, é surda, é índia da etnia Apurinã.
Tem 9 anos.
Corre risco de vida.
Mora em Jaturana, uma comunidade do município de Manacapuru, a 120 quilómetros de Manaus, capital do Estado da Amazónia.
A sua família é uma irmã de 16 anos, já casada, e o cunhado.
Foi internada nos fins de Março com uma anemia aguda (é a fome no Brasil), uma pneumonia (as imunodeficiências crescem no Brasil), e malária grave (ainda há muita malária no Brasil).
Tem 9 anos, repito.
Foi internada numa maternidade pública porque, com os seus 9 anos, está grávida de 5 meses.
Não sabe, ou não quer dizer, quem é o pai do seu filho.
A deficiência auditiva e o desprezo social prejudicam a comunicação.
Dentro de um mês a gestação terá de ser interrompida por cesariana – o seu corpo de menina não suportaria o crescimento do feto.
Na cama da enfermaria do hospital, a índia menina brinca com uma boneca. Uma boneca pouco menor do que ela, pouco maior que o filho que traz no ventre e vai perder.
Um filho índio que nunca saberá quem foi Cabral, e que nunca dançará no dia do Índio, nos 19 de Abril. Tal como sua mãe, a indiazinha Apurinã de 9 anos.



1 Comments:

Blogger Luís Alves de Fraga said...

É triste que assim aconteça nessa terra. Mas pela vida de um Índio que não vai dançar no dia do Índio ganhámos nós, os seus leitores, uma página cheia de imensa ternura e dor. O Homem é, afinal, um ser egoísta... com noções de uma moral que versos e anversos. Um abraço

sexta-feira, abril 21, 2006 5:29:00 da manhã  

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