Antes de mais, no pressuposto de que se pode entender por sistema um conjunto de partes relacionadas de modo a convergirem num determinado objectivo, físico, mental, intelectual, artístico, religioso, pode dizer-se que não há sistemas perfeitos, perfeitos no sentido de cumprirem, sem qualquer motivo de queixa dos utilizadores, aquele mesmo objectivo para que cada um deles foi criado.
Isto é válido, tanto para os sistemas abertos, aqueles em que as trocas de informação com o exterior são livres, como para os sistemas fechados, em que a informação circula dentro, e só, das suas fronteiras.
E mesmo quando actuam razoavelmente bem, o atrito no funcionamento, o ruído na comunicação, as quebras de energia, as perturbações inesperadas e não controláveis, as falhas humanas, tudo isso contribui para que os sistemas, nalgumas situações, pelo menos, deixem muito a desejar.
Na verdade, seja ele filosófico, político, financeiro, monetário, de pesos e medidas, de apostas mútuas, de avaliação de aprendizagem, de defesa pessoal ou colectiva, de transportes, até de repressão, enfim, do que quer que seja, incluindo o sistema nervoso, nenhum deles pode vangloriar-se, apesar dos méritos que exibam, de ser perfeito, isento de erro, plenamente satisfatório para quem tem de o usar.
No entanto, apesar de todos os defeitos que possam ser imputados a cada um deles, um dentre todos leva a palma das responsabilidades por tudo o que de mal e mau vem ao mundo.
A ele se chama de forma capciosa e redutora o sistema.
Mesmo não o conhecendo em particular e pormenor, todos já ouviram falar dele, e sofreram os seus efeitos, da velhinha pensionista, ao comandante do quartel, do rural semi-analfabeto, ao professor universitário, do indigente, ao ricaço, do porteiro do ministério, ao presidente, seja ele qual for.
Apesar desta infiltração generalizada de conseqüências, poucas pessoas, a não ser os especialistas, lhe viram a cara, isto é, têm uma noção exacta do que é o sistema e de como ele se comporta na realidade.
O sistema, habitualmente dócil, que se deixa controlar por um simples teclado onde se enfileiram letras, números e outros símbolos, por vezes, ao que nos querem fazer crer, toma birras, deixa-se tomar por raivas, recusa-se a obedecer às instruções, e, em casos extremos, adormece por tempo indefinido, como se fosse um ser autónomo, com vontade própria.
Então reclama a presença de curadores que lhe reencaminhem os fluidos, e lhe restabeleçam a eficácia que dele é esperada.
Porque mostrou tendência a adoecer algumas vezes, logo o rotularam, sem remédio, sem o benefício da remissão.
E, a partir da etiqueta, passaram a atribuir-lhe, então, as culpas por tudo o que corre mal no relacionamento dos cidadãos com as instituições.
Se o dinheiro não chega a tempo, a culpa é do sistema.
Se o documento se extraviou, a culpa é do sistema.
Se o nome do contribuinte foi trocado, a culpa é do sistema.
Se a encomenda apareceu noutro endereço, a culpa é do sistema.
Se o horário do avião não se cumpriu, a culpa é do sistema.
Se só há consulta médica daqui a um ano, a culpa é do sistema.
Se o leite desnatado faltou no supermercado durante três semanas, a culpa é do sistema.
Se a reclamação apresentada no Ministério Público não teve qualquer resposta, a culpa é do sistema.
Se a polícia nada faz para prender o assassino, a culpa é do sistema.
Se trocaram as análises no laboratório, a culpa é do sistema.
E assim por aí fora.
Enfim, o sistema é uma entidade fantasmagórica mas actuante, com as costas largas.
A sonolência do funcionário, a preguiça dos serviços, a incompetência dos responsáveis, a corrupção das instituições passaram a ser absolvidas e, até, ignoradas, por transferência integral para o sistema.
A culpa passou a ser do sistema.
E o curioso é que ninguém se lembra de que o sistema é fruto do funcionário sonolento, do serviço preguiçoso, do responsável incompetente, da instituição corrupta.
Na verdade, há um problema de sistema, mas que não é do sistema.