Recife é uma cidade porca, já tive oportunidade de o dizer em várias crónicas aqui publicadas. Se houvesse um Deus-Lixo, por certo esta seria uma das cidades que maior culto lhe prestaria.
O que é verdade do Recife, aplica-se, também, às comunidades limítrofes, principalmente litorais, que constituem a sua zona metropolitana.
As respectivas Prefeituras têm metade da culpa. É verdade que trazem na rua centenas e centenas de empregados camarários, limpando a toda a hora a sujeira que os cidadãos, sem descriminação de classe, do mais andrajoso ao mais bem vestido, atiram para o chão, estejam onde estiverem.
Um batalhão de varredores passa por uma praça e deixa tudo num brinco. Minutos depois, outro batalhão de munícipes, atrás do primeiro, coalha o chão de toda a casta de objectos considerados inúteis pelos seus utentes, ou seja, lixo.
Cascas de fruta, da multiplicidade de fruta que aqui há, caroços, pevides, graínhas, outras cascas, de cebola e batata, por exemplo, restos de comida, copos de plástico, papeis, garrafas, latas de refrigerante, pensos higiénicos (aqui chamados absorventes), pilhas gastas, filtros de automóvel, restos de pneus, coisas disformes, já sem cor, de misteriosa origem e utilidade, de tudo se encontra neste chão, caldeado numa água fétida, oleosa, escura, que vai escorrendo pelas bermas do passeio, e aí estagna nas concavidades, ou flui, viscosa, para as entradas das águas pluviais, onde vai alimentar as toalhas freáticas do subsolo.
Tudo isto acontece à vista das autoridades, policiais ou de fiscalização, que, em boa verdade, nenhuma autoridade detêm, porque lhes falta a fonte de onde emana toda a autoridade – a ética, que, nesta gente, foi substituída pela lógica da corrupção.
A culpa das Prefeituras nasce, então aqui, nesta teia em que se deixou enredar, que a leva a uma paralisia produtiva, tanto quanto à educação na vertente da higiene do povo, como no que toca à feitura de normas e posturas municipais para a correcção do comportamento das gentes.
Mas voltemos aos lixos, aos outros.
Se nas zonas mais pobres, ou de maior comércio informal, o lixo prolifera e atapeta ruas e praças, becos e calçadas, nas zonas consideradas nobres, as zonas residenciais caras, outro tipo de lixo junca o chão – o cocó dos beubéus.
Ao cair da tarde, nas avenidas à beira-mar, secas de verduras, ou para o interior, de ruas sombreadas de arvoredo, é retrato permanente o cidadão passear o seu cãozinho, ou, o que não é raro, os seus cãezinhos, numa profusão de trelas que lembra artista de circo.
E por essa avenidas onde se ouve a rebentação, e por essas ruas de verdes prazenteiros, num clima de 30 graus constantes, os cãezinhos trazidos a passear, melhor será dizer "a defecar", expelem, onde calha, onde lhes dá na vontade, cocós de formas, dimensões, cores e consistências curiosas e, muitas vezes, insuspeitadas. Depois regressam a casa contentes, cães e donos.
A gincana que os passantes têm de fazer perante tal profusão de trampa de cachorro é um verdadeiro calvário até chegar ao destino. Ou se olha para o chão e não se vê mais nada, ou se olha a paisagem e se corre o risco, com alta probabilidade, de pisar dois, três, quatro, eu sei lá, montes de dejecção canina.
Uma figura parada à beira do passeio (aqui chamado meio-fio), olhando para ambos os lados da rua, esfregando freneticamente o sapato na borda da calçada, traduz uma pisadela em falso, no alvo, na poia.
Se em casa, ao jantar ou durante a conversa com visitas, um eflúvio estranho mas logo de natureza percebida, começa a pairar no ambiente, e as visitas saem antes do previsto, ou a família abandona a mesa antes do que é habitual, a nossa figura, a tal que pisou na bosta, não se apercebeu do sucedido, da consistência inconsistente da calçada, não esfregou, pois, o pé, na aresta do passeio, e levou para casa o troféu de perdedor da gincana.
Tudo isto bem longe de uma cena passada em Portugal, há meia dúzia de anos, com uma pessoa amiga. Levou o cachorrão, um pastor belga, negro como a noite, franjado como um tapete, e, nessa noite, de intestino solto como uma maré. A minha amiga levava sempre o seu saco de plástico, como manda a civilidade, para apanhar o cocó do beubéu. Nesse dia, perante a diarreia do bicho, entendeu que nada poderia fazer.
E o cão despejou o intestino no meio da calçada. A poucos metros, dois agentes da polícia viram a cena. O cão ficou preso am uma árvore, enquanto a minha amiga teve de ir a casa buscar utensílios para limpar o empedrado.
Recife, bela, indesmentivelmente bela, Recife, que alguns insistem em chamar a Veneza do Brasil (melhor lhe ficaria o nome de "uma qualquer vilória do Marrocos mais sujo" do Brasil), não tardará o dia em que os cartazes turísticos, mesmo sem querer, por mais esforço que façam em não ser assim, terão de mostrar o cocó dos beubéus nas belas praias, nas aprazíveis avenidas, à porta dos sumptuosos shopping centers. E os postais ilustrados com tal ilustração hão-de competir com as bundas de costas, em biquíni de fio dental, que o turista acidental colecciona para mostrar aos amigos.
Os cachorros, desculpados e inocentes, têm protectores oficiais, para além dos seus donos. Tão oficiais, empenhados e dinâmicos, que se constituem em associações protectoras dos animais. Tão protectores que denunciam com aspereza qualquer maldade, mesmo menor, feita ao bichinho. Tudo bem. Cada um organiza-se onde, quando e como quer.
Então, por favor, senhores protectores dos animais, em particular dos cachorros, cachorrinhos e cachorrões, para protecção mais eficaz dos vossos protegidos, vão limpando o cocó que floresce a cada dia nestas já de si sujas ruas do Recife. Evitarão assim as minhas maldições sobre eles, sempre que os vejo passeando à trela, àquela hora, sempre a mesma, sobre a calçada que os meus sapatos limpos pisam.
Afinal de contas, culpa não têm eles, não é, senhores protectores dos animais? Então, protejam os bichinhos de injustiças.