"O julgamento fica adiado para daqui a seis meses" – o martelo do meritíssimo sela a decisão.
E assim vai.
Se o julgamento que o brasileiro faz da sua vida no Brasil não estivesse a ser cronicamente adiado, por certo a qualidade de vida de grande parte da população seria diferente.
Assim, adia-se o julgamento, adia-se o país.
Precisa de uma cirurgia. Se for urgente, com sorte aguarda vez para o ano seguinte. Se não for, tem pela frente uma espera de cinco ou seis anos.
A reparação daquele troço de 60 quilómetros de buracos na estrada fica adiada para quando houver eleições.
O início da construção do hospital de que a população tanto carece tem de ser adiado para daqui a dois anos, ocasião em que será reposta a verba que foi gasta agora com as festas da cidade.
As marcações para a consulta de que aquele cidadão anda tão precisado acabaram. Agora só para o mês que vem. E ele já anda nisto há mais de dois meses. As coisas vão-se compondo no atendimento porque adiar a saúde antecipa a morte. Assim, as filas de espera, embora gordas, não crescem tão exponencialmente.
Aquela votação na câmara municipal sobre a benfeitoria de iluminação pública no povoado talvez possa ser votada, sim, numa das próximas sessões, depois da Páscoa. Agora é preciso soltar o Carnaval.
O decreto-lei que pode melhorar a vida de alguns milhões de cidadãos foi aprovado pelos parlamentares. O presidente da República vai assinar logo que regresse da viagem de 20 dias ao estrangeiro que inicia depois de amanhã.
O exame pericial quanto à causa da morte da criança sob suspeita de espancamento poderá sair dentro de 20 dias (úteis). Tanto faz. A verdade é que ela já morreu, não é mesmo?
O inquérito aos agentes de polícia que entraram a disparar numa favela e mataram 5 menores fica para daqui a quatro meses, pelo menos. E, como são presumíveis inocentes, continuam ao serviço.
O relatório da guarda costeira sobre o barco de recreio superlotado que se afundou deverá demorar 90 dias, no mínimo. Dele vai depender a atribuição, ou não, de indemnizações aos familiares das vítimas.
A certidão urgente terá de ficar para segunda-feira, porque hoje é sexta, e a esta hora, duas da tarde, o escrivão já saiu.
A certificação do documento só pode ser feita depois do almoço porque hoje é segunda-feira, e às 11 da manhã o escrivão ainda não chegou.
O depoimento das testemunhas do assalto ao casal de sexagenários, que estão no hospital, foi marcado para depois das férias judiciais que começam para a semana e se prolongam por 30 dias.
A declaração do banco para apresentar na Repartição de Finanças terá de esperar, porque o gerente está de baixa clínica, e o substituto prolongou o feriado.
A declaração da Repartição de Finanças para que o banco liberte a verba em dívida ao cidadão só poderá ser entregue quando a máquina certificadora for consertada.
A reparação da máquina certificadora da Repartição de Finanças depende da autorização do secretário, que está de férias.
Se o padrinho não tivesse adiado o testamento, o afilhado hoje seria rico.
O exame sobre a paternidade daquele homem para eventual pagamento de pensão alimentar só estará concluído dentro de 3 meses.
Os alunos adiam o estudo, porque os professores adiam as aulas por meio de greves e faltas sucessivas.
As Comissões Parlamentares de Inquérito, com assuntos escaldantes nas mãos, são alvo do desejo de adiamento dos trabalhos para o ano seguinte, por parte dos que pretendem fazer esquecer a crise de corrupção que floresce a cada dia. Só não foram adiados, à última hora, porque os parlamentares receberão dois salários suplementares, 25 mil reais (cerca de 10,5 mil euros), o que representa um rombo nos bolsos dos contribuintes de 100 milhões de reais (41,7 milhões de euros). Isto para trabalharem durante as férias de Natal.
E assim se vai adiando tudo e mais alguma coisa. Não faças hoje o que poderes guardar para amanhã ou depois. E depois, vão aparecendo as classificações sobre variados itens, publicadas por idóneas organizações internacionais, cujos valores deixam os brasileiros admirados e constrangidos.
A palavra de ordem, mesmo assim, continua a ser "fica para depois", seja o pagamento de uma multa, seja a cirurgia do joelho.
No Brasil nada se faz no momento presente. Talvez por isso se possa dizer, num rasgo de humor sem graça, que o Brasil é o país do futuro.
Estimados leitores, como o ano finda, despeço-me até ao futuro.