CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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sexta-feira, dezembro 09, 2005

DOIS PRESOS, DUAS MEDIDAS

Quando a popular expressão "dois pesos e duas medidas" tem demasiado uso nas conversas em família, nos locais de trabalho, nos barzinhos, nos cabeleireiros e barbeiros, nos tribunais, na imprensa duma dada comunidade, isso sobressai como um sintoma claro de que a equidade não é aí prática valorizada.
E, de tão familiar e banal, pode dar lugar a outras em que a ideia de base permanece, como é o exemplo da que titula esta crónica.
Em livros, revistas e jornais, anúncios e placas, desenhos e pinturas, relevos e estátuas, a figura da Justiça é-nos apresentada como sendo cega. Para tal, os seus autores, invariavelmente, vendam-lhe os olhos.
Por isso, do mesmo modo a frase "a Justiça é cega" aparece com frequência no discurso falado e escrito do dia-a-dia.
Contudo, muitas vezes, também, a referida cegueira não quer dizer imparcialidade, coerência e objectividade, mas o contrário disto tudo, querendo ilustrar algum acto injusto.
É claro que a Lei, sendo feita e aplicada por homens e mulheres, contém, em cada uma destas operações, uma certa dose de imperfeição.
Mas há limites para tudo, até mesmo para a imperfeição, em particular quando ela se impõe aos nossos olhos que não são cegos de forma tão evidente, grosseira e cruel como a dos casos que passo a narrar sucintamente. Na verdade não são precisas muitas palavras. A força e o peso dos factos falam por si.
Dona Iolanda é uma cidadã brasileira de Campinas, cidade do interior do estado de São Paulo. Iolanda foi condenada a 4 anos de prisão em regime fechado, acusada de tráfico de drogas. Supostamente terá sido encontrada com 14 pedras de crack. O advogado de defesa alega que "não havia provas nos autos e a defesa foi demonstrada durante o processo". Iolanda tem 79 anos. Iolanda é cancerosa em fase terminal. O advogado, com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), secção de Campinas, entrou com quatro recursos visando, dadas todas as circunstâncias, transformar a prisão no cárcere em prisão domiciliar, para que pudesse ter um pouco mais de assistência médica e afetiva. Recursos indeferidos.
Anderson, 25 anos, conhecido no mundo do crime como Lorde, foi condenado a 8 anos e 8 meses por tráfico de cocaína e maconha. Lorde já estivera preso por assalto à mão armada, e, enquanto menor, fora detido mas solto logo de seguida. Cumpridos 5 anos e 7 meses, Lorde passou a liberdade condicional por bom comportamento. Entretanto, como chefe de quadrilha a operar numa favela do norte do Rio de Janeiro, Lorde foi preso de novo, mas, segundo declarações de uma denúncia anónima, conseguiu a liberdade por ter condescendido com a extorsão de 2000 reais (cerca de 800 euros) que lhe fizeram os agentes da polícia que o capturaram. Há dias, após 7 meses em condicional, Lorde ordenou a membros do seu gangue que incendiassem com gasolina um transporte colectivo da cidade. A ordem foi "botar fogo no ônibus e não deixar ninguém sair", conforme revelou o único elemento do grupo que foi aprisionado. O carro, escolhido aleatoriamente numa das carreiras urbanas do Rio, ardeu completamente. Dos 19 passageiros, 14 ficaram feridos, alguns com gravidade, e 5 morreram carbonizados, incluindo uma criança de um ano. Lorde desapareceu.
Nos casos relatados, a Justiça não está cega nem tem venda. É vesga. É zarolha. Dos dois olhos e em alto grau.
Num país de Justiça contra-natura, e onde a ética constitui um luxo de poucos e para poucos, a felicidade da população, como um todo, deixa de ser uma utopia e passa a ser um desengano. Irremediavelmente. Irremediavelmente Iolanda. Irremediavelmente Lorde.



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