CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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terça-feira, novembro 29, 2005

A BOLA OU A VIDA

Não se trata de um erro tipográfico no título, embora de imediato se pudesse pensar em "a bolsa ou a vida".
É, de facto, "a bola ou a vida".
Há quem seja capaz de pôr a vida em risco, a sua e, o que é mais grave, a dos outros também, por causa do futebol. São os doentes da bola, da bola dos pés e da bola da cabeça, de que mostrarei à frente um bom (e deprimente) exemplo.
Ataques cardíacos, alguns fulminantes, apostas ruinosas que desgraçam o próprio e a família, bebedeiras, agressões, assassinatos, há de tudo um pouco, ou um muito, para ser mais preciso.
Mas, no Brasil, país de emoções extremadas, ainda surgem cenas surpreendentes, pelo menos para os europeus.
Aqui o futebol é um mundo de loucos, uma loucura que se traduz em qualquer coisa como 290 equipas, só na primeira divisão.
Neste imenso torvelinho, um dos principais favoritos na semana passada era o Corinthians, à beira, então, de se sagrar campeão do Brasil, no campeonato brasileiro, o chamado Brasileirão.
Este clube de São Paulo, capital do estado do mesmo nome com cerca de 18 milhões de habitantes, seguia à frente com 78 pontos, 23 vitórias e 8 derrotas.
No passado domingo disputou a taça com o 16º classificado, detentor de 48 pontos. O Ponte Preta, assim se chama o adversário que defrontou, com 14 vitórias e 20 derrotas, é o mais antigo clube de futebol do país, fundado em São Paulo em 1900.
Estatisticamente, a vitória não seria difícil.
Contudo, para que a sagração pudesse ser uma certeza antes do último jogo da temporada, era preciso que o Palmeiras, também de São Paulo, em 5º lugar (67 pontos, 19 vitórias e 11 derrotas) no mínimo empatasse com a equipa que estava em segundo lugar, o Internacional, do estado de Rio Grande do Sul, com 75 pontos, 22 vitórias e 9 derrotas. O jogo efectuou-se no mesmo domingo.
Há muito que ambos os desafios prometiam enchente. Mas previa-se que o recorde de espectadores fosse, como foi, para o jogo do Corinthians, no estádio paulista de Morumbi.
Os 80 mil lugares lotaram. Só para os corintianos foram vendidos 63 mil bilhetes num fôlego de dois dias.
Longas filas de muitas horas nos 9 postos de venda da cidade provocaram tumultos, e obrigaram a intervenções e reforço da acção policial.
Quando os ingressos acabaram nos vendedores autorizados, o mercado paralelo começou a comercializar os lugares de bancada a 150 reais (60 euros), um preço 10 vezes superior ao da tabela, e, nalguns casos, a 200.
O salário mínimo no Brasil é de 300 reais.
Com bastante antecedência, no distante estado do Maranhão, um ferrenho adepto do Corinthians de nome Pablo, cidadão brasileiro casado, com família, vendeu o frigorífico (aqui chamado geladeira) por 300 reais (cerca de 120 euros), menos de metade do preço médio de um aparelho novo. Com o dinheiro apurado comprou uma passagem no terminal rodoviário da sua cidade, São Luís, capital do estado, e rumou a São Paulo durante dois dias e meio, ao longo de 2970 quilómetros.
Aí chegado, aguentou firme durante horas na fila dos ingressos e conseguiu um.
Entretanto, em casa, em plena zona equatorial, com temperaturas variando entre 23 e 33 graus centígrados, a família padecia de calor e de falta de líquidos frescos e comida conservada em condições de higiene, porque a geladeira saíra uma semana atrás, a troco do futebol.
Afinal, para o adepto, o que vale uma geladeira, comparada com um jogo de futebol daquela categoria? Apesar de transmitido pela televisão, aquele jogo único impunha a sua presença, e merecia todos os sacrifícios – até mesmo os da família.
Geladeiras há muitas, assim haja dinheiro (que, pelos vistos, não é o caso).
O Corinthians ganhou ao Ponte Preta, mas o Palmeiras não empatou com o Internacional. Perdeu. O Corinthians precisa ainda do último jogo que falta no campeonato para poder ser considerado campeão brasileiro.
No entanto, o heróico torcedor Pablo já avisou a família, em face de este novo cenário. Ficará outra semana em São Paulo para assistir ao decisivo encontro. Por outro lado, fez questão de a tranquilizar: com as economias que conseguiu, não precisará vender mais electrodomésticos para comprar novo bilhete de ingresso.
Presumo que a família de Pablo, perante a notícia, terá ficado desvanecida, encantada e orgulhosa, mesmo com sede e com comida estragada.
Valente Pablo. É com torcedores desta fibra que o Brasil vai, com certeza, para a frente. Para a frente no futebol, mesmo que a família, o trabalho, e tudo o resto fiquem despreocupadamente para trás.
Ah!, se Deus não fosse brasileiro...



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