CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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sexta-feira, novembro 25, 2005

A ILUSÃO DA NOTA 7

Estudo recentemente publicado no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra a escala de remunerações das actividades profissionais brasileiras, e sublinha aquilo que já se sabia empiricamente: um lugar ao sol no mercado de trabalho depende, sobre outros factores, do grau de instrução, isto é, quanto mais estudos, maior a facilidade de conseguir um bom emprego.
Os filósofos e teóricos da revolução bolchevista, nos fins do séc. XIX e início do séc. XX, já afirmavam que o trabalho é uma mercadoria como qualquer outra. Se não é, pelo menos parece comportar-se como tal, sujeita, portanto, às leis do mercado, as leis da oferta e da procura. Se há excesso de mão-de-obra num determinado sector, os salários baixam. Se a procura no sector é muito elevada, os salários sobem. Teoricamente será assim. Mas é ainda mais complexo do que isso.
Na primeira metade do século passado, queimava-se café nas locomotivas brasileiras, enterravam-se manadas inteiras na Argentina, e a América do Norte afundava navios carregados de trigo. Tudo isso para que o preço desses produtos não baixasse no mercado internacional. Ao provocar uma escassez artificial desses bens, conseguia-se obter um preço compensador para os respectivos produtores.
Mas não se pode começar a matar gente para fazer subir os salários, ou para criar postos de trabalho. A competição desencadeia-se por outras vias, uma das quais consiste no aumento do número de anos de preparação académica.
O tempo de estudo ocupa cada vez maior fatia da vida das pessoas. Dantes, até há relativamente pouco tempo, a meta estava no curso superior. De súbito, isso deixou de ser suficiente.
Especialidades, pós-graduações, mestrados, doutoramentos, reciclagens, não falando já das actualizações pela vida fora, ocupam entre 1/2 e 1/3, dependendo dos países, do tempo de vida média esperada do cidadão. E a tendência é para este período aumentar.
Cada vez haverá menos empregos, tal como os conhecemos hoje, ainda disponíveis, permanentes e bem remunerados. Existirá, em contrapartida, um número cada vez maior de candidatos necessitados de emprego sem o conseguir.
O sistema em que vivemos não cria postos de trabalho ao ritmo do crescimento da população activa. Mais e pior do que isso, nalguns sectores o sistema destrói postos de trabalho.
Karl Marx afirmava em 1865 que "a tendência geral da produção capitalista não é elevar, mas sim baixar o nível médio dos salários". Nem ele supunha quanto.
Na Alemanha, em 1996, registou-se uma população de mais de 6 milhões de desempregados. Este número é superior à população residente de Portugal, ou da Noruega, ou da Dinamarca, ou da Irlanda, ou da Nicarágua. Sensivelmente igual à do Paraguai, ou de El Salvador. O dobro da de Porto Rico, ou do Panamá, ou do estado da Paraíba, no Brasil.
As perspectivas não são para reverter a tendência, mas para agravá-la.
Por essa época de fins de século, Roland Berger, um dos mais conceituados consultores empresariais alemães, advertia para que, possivelmente, um em cada dois quadros médios perderia o emprego a breve trecho.
Avisava, também, que nos países industrializados os patrões dos grandes grupos esperariam que houvesse pessoas a varrer ruas por um salário quase nulo, e quem aceitasse emprego de criado a troco de um alojamento desprezível.
Mas o alerta era tardio para alguns países. Em Lisboa, já há meia dúzia de anos se encontravam jovens diplomados em agronomia varrendo as avenidas e as calçadas da cidade. E engenheiros e arquitectos brasileiros desempregados que emigraram em busca de trabalho à altura das suas qualificações estão nos Estados Unidos a pintar paredes, como qualquer pedreiro.
Em finais de Setembro de 1995, no hotel Fairmont de São Francisco, Califórnia, Mikkail Gorbatchev, último presidente da União Soviética, e Prémio Nobel da Paz, reuniu 500 figuras, entre políticos, líderes económicos e científicos de primeiro plano, oriundos de todos os continentes. O objectivo era uma discussão global que deveria abrir caminho para o séc. XXI, e teve como ideia condutora "em marcha para uma nova civilização".
No livro "A armadilha da globalização", publicado em Portugal pela editora Terramar, Lisboa, em 1998, é possível obter algumas conclusões do que foi esse encontro neste domínio do emprego/desemprego.
Os seus autores, Hans-Peter Martin, doutorado em Direito e Ciências Políticas, e Harald Schumann, engenheiro, ambos jornalistas alemães que ocupam lugar de destaque na conceituada revista "Der Spiegel", escrevem o seguinte trecho de arrepiar.
"No próximo século, para manter a actividade da economia mundial, dois décimos da população activa serão suficientes. 'Não haverá necessidade de mais mão-de-obra', estima o magnata Washington SyCip. Um quinto dos candidatos aos postos de trabalho bastará para produzir todas as mercadorias e para fornecer as prestações de serviço de grande valor de que a sociedade mundial pode gozar. Estes dois décimos da população participarão assim activamente na vida, nos rendimentos e no consumo – seja em que país for. (...) Mas e os restantes? Será possível imaginar que 80% das pessoas que desejam trabalhar não vão encontrar emprego? 'Não há dúvida de que os 80% restantes vão ter problemas consideráveis', afirma o autor norte-americano Jeremy Rifkin, que escreveu o livro 'The end of work' [o fim do trabalho]. O gestor da Sun Systems, Gage, retoma a palavra e cita o director da sua empresa, Scott McNealy, considerando que, no futuro, a questão será 'to have lunch or be lunch', ou seja, 'ter algo para comer ou ser devorado' (...) entre esses inúmeros novos desempregados espalhados pelo mundo inteiro, encontrar-se-ão dezenas de milhões de pessoas que, até agora, estavam mais próximas da confortável vida quotidiana dos subúrbios da baía de São Francisco do que da luta quotidiana pela sobrevivência a que têm de se entregar os titulares de empregos precários".
O Brasil será um dos países a sofrer seriamente o impacto destas políticas, e isto por diversas razões.
Em primeiro lugar, a população cresce neste país de uma forma assustadora, e a competição tornar-se-á muito maior.
Por outro lado, é um país que defende e pratica o deixa correr, o deixa para lá, Deus é brasileiro e tudo se compõe, se não for hoje, será amanhã ou depois.
Finalmente, e com muito peso, porque dois dos mais importantes pilares em qualquer sociedade, a Família e a Escola, estão, em grande parte, arruinados no Brasil. O assunto foi objecto da crónica anterior, "Instituições falidas".
As duas instituições que já foram complementares, hoje vivem de costas uma para a outra.
O ensino é de má qualidade, interrompido com muita frequência por greves, comemorações, "passeios didácticos" e os dias de folga entre um fim-de-semana e um feriado, conhecidos por "imprensados".
O ensino privado, à parte as greves, que são inexistentes, não apresenta, na generalidade, melhor cenário.
Como verdadeiras máquinas de fazer dinheiro, através de artifícios vários de atribuição de notas as instituições particulares de ensino mantêm altos níveis de aprovação. Assim, não correm o risco de perder alunos, já que as famílias dos estudantes o que querem é poder comemorar com alívio e alegria a pontual passagem de ano lectivo, sem se preocuparem com a real competência quanto ao saber dos seus filhos. Para isso pagam o colégio ou a universidade privada. Pagou, passou. Essa a principal razão por que os cursos superiores brasileiros no estrangeiro têm o baixo reconhecimento que toda a gente conhece.
Numa escala de classificação oficial de 0 a 10, as famílias, e por maioria de razão, os alunos, geralmente contentam-se com a nota 7, aquela que dispensa aulas suplementares como preparação para provas finais de avaliação, e permite começar as férias mais cedo.
Mas, embora o nível de ensino superior deixe, muitas vezes, a desejar, as universidades, por questão de prestígio e, principalmente, de vagas, exigem altas classificações na admissão. Se o candidato não foi prevenido com antecedência, quando compreende isso já é tarde. A falta dos hábitos de trabalho que não foram inculcados a tempo já está a produzir as consequências nefastas.
Quem se deixou seduzir pela nota 7, e somente por esse patamar se bateu, ficará na cauda do cortejo dos candidatos a um emprego a todos os títulos gratificante, de que o grau de ensino é um condicionalismo.
A nota 7 é a nota do bem-estar imediato e sem esforços de maior, sem preocupações, mas tem como correspondência negativa uma possível exclusão da universidade e de um bom emprego.
A nota 7 acaba por ser a da mediocridade assentida, consentida e, muitas vezes, protegida, até, pelos responsáveis pela educação dos estudantes. Por comodidade, muitos desses "responsáveis" demitiram-se, há muito, da sua responsabilidade de educadores.
Porém, o sucesso pessoal, encarado, entre outros valores, como o da realização plena no papel de profissional na sociedade, não se conforma com atitudes, e muito menos com resultados, de mediocridade. Nem no país, nem no resto do mundo.
Família e Escola não parecem importar-se muito com isso.
"Não fazer hoje o que pode ser guardado para amanhã", e quem vier atrás que feche a porta. Mas é bom não esquecer que, habitualmente, os que vêm atrás a fechar todas as portas são os tais da nota 7.
"Será possível imaginar que 80% das pessoas que desejam trabalhar não vão encontrar emprego"?
"No próximo século, para manter a actividade da economia mundial, dois décimos da população activa serão suficientes". E, desses dois décimos, com toda a certeza estarão excluídos os nota 7.



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