A predilecção dos brasileiros pelas piadas com intervenientes portugueses é ancestral. Dizem, numa justificação mal remendada, como já ouvi, que é a forma carinhosa de se referirem ao país irmão, pai e avô.
Qual nada. Que me desculpem, mas nessas piadas há muito de despeito e de desdém, que, de resto, só nos honra e glorifica. Alimenta, afinal, uma vaidadezinha muito nossa, muito particular, muito portuguesa, de quem sabe que os defeitos e vícios que lhe são atribuídos, pertencem, afinal, a quem os relata, brincando ou não.
Quando cheguei ao Brasil, há três anos, desembarcado num aeroporto da capital de um dos estados do sul, das primeiras coisas que cidadãos brasileiros me perguntaram foi que piadas se contavam em Portugal sobre eles. A partir daí, seja no sul ou no norte, no centro ou no nordeste, a fatal pergunta nunca mais me abandonou. Sempre que conheço um novo brasileiro, ou uma família de brasileiros, o que torna a situação ainda mais difícil, aí está, na sua pura imutabilidade: "então, que piadas se contam em Portugal sobre brasileiros?"...
Respondi-lhes sempre a verdade: que não senhor, em Portugal não se contam piadas sobre brasileiros. Os brasileiros não são bode expiatório no prontuário anedótico português. O bode expiatório é outro português, o simpático e amistoso compadre alentejano.
Mas os meus interlocutores, desconfiados, dificilmente acreditavam, pensando que eu iludia a questão por delicadeza, para não os melindrar. Suponho, até, que alguns deles nunca fizeram completa fé nas minhas palavras. Os mais afoitos afirmavam mesmo que tinham a certeza, de fonte segura, que em Portugal corriam gracejos, mais leves ou mais pesados, sobre eles.
Convencidos ou não, o curioso é que uma vez descansados quanto à ausência de galhofa no canto lusitano sobre as suas estimáveis pessoas, desatavam a contar piadas envolvendo portugueses, com o estardalhaço e a gritaria típicos deles, brasileiros. Piores, muito piores, que italianos...
Tantas vezes fui assediado por causa disto, que julguei melhor precaver-me com explicações que constituíssem prova segura e incontestável das minhas afirmativas sobre o assunto.
Fui encontrá-las à farta, simples, rigorosas e provadas, em escritores portugueses da segunda metade do século XIX, com destaque para Camilo Castelo Branco.
No espólio literário português dessa época, são frequentes as alusões a "brasileiros". No nosso Camilo, essa figura é mesmo a personagem central de um dos seus romances.
Mas, afinal, quem eram estes "brasileiros"?
A miséria que grassava em Portugal nesses tempos, como noutros, mas não falemos de coisas tristes, motivou um surto de emigração para o Brasil, onde as riquezas para explorar eram suficientemente atractivas para encurtar distâncias e atenuar ausências. O espírito de aventura do português e a sua capacidade de trabalho e de adaptação a novos mundos, novas situações, foram pilares do êxito de muitos desses patrícios que atravessaram o Atlântico em busca de melhores dias, melhores vidas. Se fortuna conseguissem, melhor seria.
Saíam das recônditas serranias, das planícies gastas, dos interiores famintos e abandonados ao deus-dará pela incompetência e pelo desinteresse da classe governante de então. Analfabetos na sua maioria, levavam na magra bagagem do saco de retalhos pouco mais do que um resto de pão bolorento, daquele que o diabo amassou. O que sobrava de força nas mãos inutilmente calejadas e a lembrança da família e da terra deixadas para trás, à mistura com bentinhos ao pescoço e pagelas da virgem na carteira vazia, eram a fortuna do corpo e da mente.
Como sempre e em toda a parte, houve vencedores e vencidos. Dos fracos não reza a história, por isso se fala quase só dos que regressaram à pátria carregados de ouro nos dedos, nos pulsos e nos cofres. Esses eram os "brasileiros", o pasmo e a inveja dos conterrâneos, os que tinham saído do lar sob o olhar malicioso dos vizinhos, para regressarem, volvidos alguns anos, ostentando prosperidade, senão mesmo luxo.
O sucesso é geralmente detestado pelos semelhantes, mas a hipocrisia planta escadas encostadas às barreiras sociais, e amigos não faltaram aos "brasileiros". Amigos e mal-dizer.
Se saíram pobres de corpo e de espírito e regressaram ricos de metal, permaneceram de uma confrangedora pobreza de ideias e conhecimentos. Boçais partiram, boçais voltaram. O brilho exterior proporcionado pelo polimento do ouro acumulado mostrava-se incapaz de esconder a escassez da alfabetização que, muitas vezes, nem chegava ao rudimentar.
Enquanto isso, as mais abastadas famílias do Brasil encaminhavam os seus filhos para estudar na Europa. Por razões históricas e linguísticas, Portugal era um dos países de opção, com preferência pelos cursos de Direito e de Medicina ministrados nas nossas universidades.
Inseridos na população estudantil portuguesa, os jovens brasileiros participavam com aqueles seus colegas não só das actividades académicas, mas, como é natural, de tudo o que dizia respeito ao dia-a-dia da comunidade em que viviam.
Foi assim que conheceram o retrato do portuguesíssimo "brasileiro" e as suas afrontas à cultura minimamente exigida na época a qualquer cidadão. Participaram nas larachas a seu respeito. Muitos, sem dúvida, tiveram oportunidade de conhecer pessoalmente alguns desses espécimes e de com eles privar. Em confidência trocavam-se histórias, porventura dilatadas, sobre a imbecilidade que os caracterizava. E o acervo a esse respeito foi crescendo.
Regressados ao Brasil, ao seio das famílias de origem, bacharéis e doutores narravam nas tardes quentes da casa grande da fazenda as aventuras e desventuras nas terras lusas. As viagens, o clima, a universidade, os lentes, as repúblicas, as serenatas, os amores, as corridas de touros, os petiscos, os vinhos e licores, as procissões e... os "brasileiros". Neste particular estalava a hilaridade.
As histórias, ouvidas aos pedaços por avós meio surdos, por crianças distraídas e por criados de entendimento embotado, repercutiam de fazenda em fazenda, de família em família, reproduzindo-se desvirtuadas no conteúdo e nas personagens. O português que partira de Lisboa em busca de pão na antiga colónia sul-americana e regressara abrasileirado e com farta riqueza passou, a pouco e pouco, aqui e ali, à condição de genuíno natural do Brasil.
Assim se instituiu a crença infundada de que Portugal é um vasto repositório de piadas sobre brasileiros.
Hoje conto isto a todo o brasileiro que me faz a obrigatória pergunta decorridos 30 segundos de apresentação. Acham graça. O ego deles cresce uns palmos perante a minha singela explicação. E quando dou por mim estou a escutar piadas de portugueses no meio de um alarido geral.