Na minha casa faz-se periodicamente uma limpeza na gaveta dos remédios. Penso que o mesmo acontece em todas os outros lares, ou, pelo menos, na maioria deles.
Aquilo que está fora de prazo, porque não foi preciso usar mais, vai para o lixo, como aconselha o próprio rótulo do medicamento. O que, previsivelmente, não será mais utilizado mas ainda se encontra em bom estado dá-se a quem dele se possa aproveitar.
Assim como eu e outros cidadãos sabemos que remédios se guardam em nossas casas, também o governo deve saber o que tem na sua, que é o país. O que tem e o que não tem, aquilo com que pode contar e o que precisa adquirir ou trocar. A isto se chama gerir stocks, actividade fundamental de uma administração eficaz no campo da saúde, para fazer face a eventuais calamidades inesperadas e a epidemias.
No entanto, se há gente prevenida e outra desleixada, o mesmo se passa com os governos: uns zelam, outros, quando acordam, encontram-se perante actos consumados e irreversíveis.
O Brasil, infelizmente, actua bastante assim em diversas áreas. A saúde é uma delas. Deixa correr, depois logo se vê. E o que, invariavelmente, se vê com esta filosofia é o descalabro e o desastre.
"A gente dá um jeito", "deixa p´ra lá" e "Deus é brasileiro" são frases que se ouvem com frequência para justificar incompetência, irresponsabilidade e preguiça.
Se um posicionamento destes poderá ter graves consequências ao nível individual, com respeito à nação tem, com toda a certeza, efeitos catastróficos.
Foi o que se passou recentemente, que só não se transformou em mais um escândalo nacional porque os factos políticos dos últimos tempos (v. ESPECIAL BRASIL) têm ofuscado os restantes acontecimentos. O Brasil acaba de deitar fora 16 milhões de reais (cerca de 6,7 milhões de dólares, ou 5,6 milhões de euros). O Ministério da Saúde descobriu que nos seus depósitos em Brasília havia precisamente 16 milhões de reais em medicamentos fora de prazo, quase todos eles destinados a doentes com AIDS (SIDA).
Medicamentos que não foram distribuídos a quem deles muito precisava. Medicamentos que não foram distribuídos por inépcia de uns tantos funcionários.
Não se trata apenas de uma questão de desperdício de dinheiro dos contribuintes, dos tão sacrificados contribuintes brasileiros. Se bem que isto, só por si, já seja condenável, as repercussões na vertente humana de tal facto tornam-no criminoso.
Os medicamentos em causa, abstraindo mesmo da verba desperdiçada, não se destinavam a dores de cabeça ou espinhas na pele. A sua utilização, ou não, faz a diferença entre a vida e a morte. Mais tempo de vida com a dignidade possível, ou morte odiosa mais próxima.
A ocorrência já vem de 2003. Tem, portanto, anos de descaso, incúria, desleixo, relaxamento, e todos os sinónimos adequados para a classificar.
O governo actual, mais uma vez, foge às responsabilidades e atira a culpa para cima do anterior, de uma linha política adversária.
Não interessa se os argumentos apresentados colhem ou não. Não interessa se os responsáveis pertencem à Administração Lula da Silva, o actual presidente, apoiado pela esquerda, ou pertenceram à de Fernando Henrique Cardoso, o presidente anterior, de centro-direita.
O que está em causa, e sobre que importa reflectir, é que isso aconteceu no Brasil. Brasil, um país rico, um país que a propaganda diz ser de todos, mas onde a fome, a pobreza e a doença proliferam, enquanto fortunas surgem quase do nada em poucos anos. Brasil, onde em 2004 se contavam 362.364 doentes com AIDS/SIDA. Brasil, cujo governo, seja ele qual for, de direita, de esquerda, ou da moléstia dos cachorros, como diz o nordestino quando está irritado, se dá ao luxo de deixar perder 16 milhões em medicamentos para doentes graves, à morte, porque os deixa estragar no depósito.
País de carnavais, brincando, negligente, com coisas sérias, sem jeito, apesar de se ouvir constantemente "a gente dá um jeito".