A furiosa corrupção política que vem sendo desmontada desde Maio passado (v. Especial Brasil) na sociedade brasileira tem arrastado consigo segmentos do mundo empresarial público e privado, e ganhou contornos internacionais. Apesar das sucessivas "operações abafa" que continuam a ser ensaiadas, o homem da rua não está disposto a deixar-se enganar, e os parlamentares da comissão a quem foi entregue o caso há cerca de três meses, Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios, pretendem investigar tudo até às últimas consequências.
Agora já não há possibilidade de esconder seja o que for. As comadres zangaram-se, e as verdades surgem num tal redemoinho que a opinião pública começa a ficar intoxicada. Poderia correr-se o risco de vir a desinteressar-se, no médio prazo, como grupo de pressão sobre os órgãos encarregados de apurar os factos e punir os culpados, se não fosse a catadupa de novos acontecimentos e declarações que diariamente surgem veiculados pela comunicação social.
No meio da barafunda, é constante a tentativa de fuga pela porta das traseiras, um salve-se quem puder desenfreado, à semelhança dos ratos que procuram abandonar o navio que se afunda. Só que os ratos, mesmo os mais ágeis e habilidosos, não estão a conseguir fugir a tempo e são arrastados com o barco.
Ninguém conhece ninguém, ninguém é solidário com ninguém, amigos renegam amigos, companheiros de armas renegam companheiros de armas, patrões renegam funcionários, mulheres renegam maridos, partidos renegam militantes.
Toda a gente acusa toda a gente. Vinganças cegas relampejam pelo ar. O Congresso (órgão que reúne senadores e deputados) está a abarrotar de pedidos de suspensão de mandatos que os deputados disparam uns contra os outros numa guerrilha imparável.
José Dirceu, o ex-ministro chefe da Casa Civil do presidente Lula, aquele que foi o homem forte do governo, continua no centro da polémica. Apontado como mentor do mensalão, a mesada que era paga a deputados da oposição para que votassem favoravelmente as propostas de lei dos governistas (e que levou a que nos últimos dois anos 136 deputados tivessem mudado 215 vezes de partido), afastado do governo na sequência destes escândalos e com outros às costas, como o do caso de um seu assessor que extorquia dinheiro de um empresário de jogos electrónicos, é acusado na revista brasileira Veja, a que desencadeou a vaga de fundo, de ter sacado, também ele, 50 mil reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros) de contas de empresas de Marcos Valério. A isto responde que é uma "armação sórdida". Mas, a talhe de foice, é, também, acusado de ter impedido, em 2002, investigações que comprovariam as extorsões levadas a cabo pelo seu ex-assessor. E é acusado, ainda, de ser o receptador de dinheiro espoliado à rede de transportes colectivos de Santo André, cidade do interior de São Paulo. Com este caso parece prender-se o assassinato do então presidente da autarquia, Celso Daniel, do PT, cujo irmão tem imputado responsabilidades a Dirceu. Já morreram seis pessoas relacionadas com o acontecimento.
Marcos Valério, o empresário do ramo da publicidade a contas com a Justiça, entre outras coisas, por fuga a impostos e às contribuições para a segurança social, e em cujas empresas eram lavados os fundos privados e públicos que alimentavam este grandioso esquema de corrupção, pretende salvar a pele por todos os meios e, como no abraço do afogado, vai levando de arrastão para o fundo do lodaçal figuras que se esforçam, já sem êxito, por aparentar inocência.
A última divulgação de Marcos Valério, que Dirceu não comentou, foi a de que ajudara a ex-mulher deste, Ângela Saragoza, a arranjar emprego no banco BMG, e a conseguir um empréstimo avultado no Banco Rural. Ambas as instituições estão comprometidas até ao pescoço nos escândalos em investigação. Coincidências.
Outra coincidência interessante, também revelada por Valério: o empresário pagava contas pessoais do Procurador Geral da Fazenda, entidade que julga as actividades financeiras, como as do Banco Rural e do BMG.
Quanto a este último banco, ainda não foi possível justificar a saída de vários milhões para contas de empresas de Marcos Valério, no ano de 2004, ano de eleições autárquicas.
Igualmente por explicar, três reuniões entre altos responsáveis daqueles bancos e o então ministro José Dirceu, conforme divulgado por Marcos Valério.
Simone Vasconcelos, directora financeira da SMP&B, principal empresa de Marcos Valério, foi sacadora no Banco Rural de mais de 6 milhões de reais, apresentando três versões diferentes quanto ao destino do dinheiro. Da primeira vez negou; confrontada com as provas, admitiu, mas disse desconhecer os beneficiários.
A irritação da CPI dos Correios perante a arrogância das suas respostas e pelas mentiras descaradas com que pensava poder tapar o sol com a peneira, alegando, por exemplo, desconhecer, como directora financeira, o montante da facturação da empresa, levaram um dos inquiridores a lembrar-lhe que estava sob compromisso de dizer a verdade e que, a continuar assim, poderia sair dali sob prisão. Acabou por revelar uma lista de nomes de favorecidos, não sem manifesta revolta.
A audiência de Delúbio Soares na comissão de ética do partido do presidente Lula, Partido dos Trabalhadores (PT), onde foi tesoureiro até ao rebentar destas bombas, teve de ser adiada por desconfiança quanto ao coordenador da comissão, Danilo de Camargo. Na véspera, ele teria estado numa reunião clandestina com o demitido presidente do PT, José Genoíno, amigo de Delúbio e uma das figuras do escândalo. Passado pouco tempo, Danilo foi afastado da Comissão de Ética.
Alguns dias depois, já com novo coordenador, a comissão não arranjou coragem maioritária para afastar o ex-tesoureiro, conforme pretendia a ala mais à esquerda do partido, e foi o próprio Delúbio Soares que, com pompa e circunstância, se auto-suspendeu por 90 dias. A comissão, para salvar a honra do convento, estendeu a suspensão por tempo indeterminado.Os acontecimentos atropelam-se.
O chefe máximo da Casa da Moeda, denunciado por Marcos Valério de ter sacado de contas suas no banco Rural 2,6 milhões de reais, pede a demissão que é imediatamente aceite.
Vem ao conhecimento geral que o antigo presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, terá, igualmente, recebido fundos lavados de fresco, 50 mil, recolhidos à boca do cofre por sua mulher. Como uma barata tonta, ora diz que renuncia, ora que não renuncia do cargo de parlamentar.
Quem renunciou, realmente, foi Valdemar da Costa Neto, ex-deputado federal por São Paulo e ex-presidente do Partido Liberal (PL). De um dos principais aliados do governo, o seu partido passou a um dos primeiros adversários, agora que foi indiciado de receber dinheiros sem prestação de contas públicas, pois se tratava de dinheiro de suborno. Acusa o presidente Lula da Silva e o vice-presidente José Alencar, do PL, de saberem da transferência de 10 milhões para este partido, em troca de apoio político.
Há algum tempo, Costa Neto insurgira-se contra o recebimento de verbas por parte de outros parlamentares. Chegou a vez de ser desmascarado.
Mas não se julgue que a sua renúncia representa um acto de coragem ou de penitência. Bem pelo contrário. Costa Neto renunciou hipocritamente porque, segundo a lei eleitoral brasileira, assim evita a cassação (impedimento de exercício) de direitos políticos por oito anos, face ao crime cometido. Portanto, nas eleições que se avizinham poderá recandidatar-se, confiando na curta memória do povo.
Foi a pensar em casos semelhantes que o Congresso começou a estudar a hipótese de retirar os direitos políticos por oito anos aos que renunciarem para fugir à Lei. A iniciativa partiu do deputado Tarso Genro, ex-ministro da Educação, actual presidente do PT, cargo que ocupa a pedido de Lula da Silva. A medida em análise já fez retroceder muitos deputados que se preparavam para renunciar. Tudo gente séria, da mais pura linhagem da honradez e da honestidade.
Em paralelo, o Congresso pensa adoptar outros procedimentos numa mini-reforma política, como sejam a votação em listas e não em personalidades (listas fechadas), a proibição de coligações, e o financiamento de campanhas apenas com dinheiros públicos, severamente fiscalizados.
Enquanto vai fazendo revelações, o empresário Marcos Val[erio pede ao Procurador Geral da República, através dos seus advogados, a redução da pena e o defeso de prisão preventiva, em troca de colaboração com as autoridades. Recusado. Qual pena, se não há nenhum julgamento? Réu confesso, diz-se cada vez mais apavorado, em especial quando se encontra sozinho. À cautela, os guarda-costas que sempre o acompanham trazem a cabeça completamente rapada, como ele. Escolher dentre três alvos é mais lento do que apontar a um. Esta é a lógica.
Para além das referidas incriminações e das buscas que estão a ser feitas nas suas contas pessoais, de sua mulher e de suas empresas, o empresário tem a Justiça no encalço de 1,1 bilhões que terão passado para uma empresa no paraíso fiscal das Ilhas Caimão.
Quanto mais perseguições lhe movem, mais revelações traz a público. Segundo ele, as suas empresas terão repassado cerca de 16 milhões de reais para as empresas de Duda Mendonça, publicitário que trabalha para o PT desde 2001. Ao FBI foi pedida colaboração para investigar as contas de Duda Mendonça no exterior. Já anteriormente se equacionara o pedido de ajuda à Interpol para averiguações quanto a uma empresa com sede no Uruguai, cuja delegação no Brasil escoava clandestinamente divisas para fora do país, divisas de Marcos Valério.
O Partido Comunista do Brasil (PC do B), que há pouco tempo acusava os partidos oposicionistas de conluio para o derrube do governo, também ele deixa o seu aliado nu na praça pública, e vem exigir na mesma praça movimentações de rua contra a corrupção. Será o despeito de quem, ao que parece, não foi beneficiado?
No início de Agosto teve lugar na Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados o tão esperado frente a frente José Dirceu – Roberto Jefferson. Ex-presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o deputado Jefferson tem sido, também ele, fonte inesgotável de denúncias em todo este processo de corrupção.
Quando o funcionário dos Correios Maurício Marinho, responsável pelo sector de compras e licitações da empresa estatal, foi filmado recebendo 3 mil reais de comissões (propinas, assim se chamam no Brasil) de empresários a quem seriam concedidos favores, acusou de imediato Roberto Jefferson de ser um dos responsáveis por uma esquema de corrupção que grassava na empresa. A sua responsabilidade teria começado nas nomeações para cargos de confiança naquela empresa, a que o seu partido tivera direito.
A partir daí, o deputado, a contas com a Justiça por envolvimento em várias ilegalidades, segundo é acusado publicamente e a que se não digna responder, começou a cortar a direito num solo de trombone que não pára e é capaz de ser ouvido do outro lado do planeta.
No frente a frente com José Dirceu, Roberto Jefferson figurava como acusado, e aquele como testemunha de acusação. Mas as posições inverteram-se logo no início. Dirceu, após responder a 32 quesitos colocados pelo relator da comissão, tomou a apalavra, e, num discurso que durou mais de duas horas, assumiu o papel de vítima, ofendido, acusado e pré-julgado. Ele que estava ali como testemunha de acusação tornou-se aos olhos de todos um réu acossado, muitas vezes a meter os pés pelas mãos e a cair em contradições constantes.
Declarando que não renunciaria, porque isso seria uma confissão de culpa, e que não aceitaria ser banido de direitos políticos, este homem ambicioso, de perto de 50 anos, escorregou com frequência ao expor as ideias, mostrando quem realmente é. Após um elogio despropositado à actuação e à pessoa do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, acabou por dizer que o seu projecto político era governar o Brasil com o presidente Lula, ou, traduzido o lapso, governar o Brasil através do presidente Lula. Como este não é facilmente domável, ele próprio com tendências ditatoriais, Dirceu teria de usar métodos subterrâneos. Foi o que começou a fazer. Resta apurar se alguns destes métodos não seriam do conhecimento de Lula da Silva, consentidos por conveniência própria.
Mais à frente, declarou que o seu afastamento do governo resultara de uma decisão conjunta com o presidente. Quando emendou a mão, atribuindo a decisão em exclusividade a Lula, como chefe do governo, o mal já estava feito, o dito já fora dito.
Jefferson não o poupou. Atacou o adversário por quem nutre um ódio demencial, conforme ele mesmo disse por outras palavras, olhos nos olhos: "o deputado desperta em mim as reacções mais primárias, e eu tenho medo disso".
José Dirceu, com tudo para perder, negou veementemente a totalidade das acusações. Nalguns casos acabou por, implicitamente, aceitar algumas delas, afirmando, por exemplo, que não podia responder por actos da direcção do PT. Reconhecia, assim, que os actos tinham sido praticados.
Ser acusado por alguém a contas com a Justiça será incómodo. Que as acusações vão sendo comprovadas é suprema ironia do destino.
Roberto Jefferson, sem nada para perder, reiterou todas as acusações e acrescentou outras. Disse, por exemplo, que em Janeiro e em Março de 2004 revelara ao presidente Lula tudo o que estava a passar-se no respeitante ao esquema de suborno de deputados. A acusação não mereceu qualquer desmentido por parte do Palácio do Planalto, a sede do governo brasileiro.
Prosseguindo a lavagem da roupa suja, revelou que Dirceu tivera negociações com a Portugal Telecom, o gigante português de telecomunicações, tentando obter fundos para o saneamento financeiro do PT e do PTB. Isto em Janeiro de 2005. Da embaixada, composta por quatro membros, faria parte o empresário Marcos Valério. A revelação teve o mesmo estrondo no Brasil e em Portugal, tanto mais que Valério e a própria Portugal Telecom admitiram a visita àquela empresa, embora defendendo que os objectivos foram meramente comerciais e não envolveram hipotéticos financiamentos.
O semanário "Expresso", publicado em Lisboa, noticiara na edição de 16 de Julho passado que o então ministro português das Obras Públicas, Transportes e comunicações, António Mexia, em fins de Outubro de 2004 recebera Marcos Valério como "consultor do presidente do Brasil". A entrevista teria sido solicitada pelo presidente da Portugal Telecom, Miguel Horta e Costa.
Perante os acontecimentos recentes, o mal-estar instalou-se dos dois lados do Atlântico, e começaram a surgir os dito-por-não-dito. Mas há demasiados acasos que dão que pensar.
António Mexia, entre 1990 e 1998, foi administrador do Banco Espírito Santo (BES), o banco português que ocupa a terceira posição no quadro dos bancos europeus. Miguel Horta e Costa foi também administrador desse banco, entre 1990 e 1992. O BES tem participação na Portugal Telecom. Ainda em Outubro de 2004, Marcos Valério foi recebido pelo presidente do BES, Ricardo Salgado. Este, por sua vez, esteve no Brasil em Janeiro de 2005, tendo conversado com José Dirceu. O promotor do encontro foi Marcos Valério que também se encontrava presente. Nestes períodos, o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, deslocou-se várias vezes a Portugal.
Recentemente, a CPI dos Correios concluíra que cerca de dois terços das fontes de abastecimento financeiro das contas de Marcos Valério para alimentar o processo de corrupção, apuradas até à data, eram constituídos por empresas de telecomunicações brasileiras. Foram encontradas, semi-destruídas, provas disso em casa de um irmão do contabilista (contador, no Brasil) de Marcos Valério.
Nova corrida, nova viagem, como nos carrosséis de feirinha, novo dia, nova denúncia. Agora tocou ao próprio presidente, Luís Inácio Lula da Silva. Veio a lume que uma eventual dívida de 30 mil reais que contraíra junto do partido, ao que parece, estaria a ser paga em parcelas de 10 mil, via Internet, não se sabe por quem.
Ao mesmo tempo, Marcos Valério assegura que pagou as contas relativas à festa da tomada de posse do presidente, em 2003, e afirma, também, que das suas empresas saíram 15 milhões para a campanha eleitoral do presidente. E o presidente continua a afirmar que não sabia de nada, fosse legal ou ilegal.
Militantes do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), constituído em grande parte por dirigentes e activistas sindicais, tradicionalmente aliados do governo, pedem à CPI dos Correios e à Procuradoria Geral da República para que o presidente Lula seja investigado.
O partido da Frente Liberal (PFL) acusa Lula na Procuradoria Geral da República de gastar dinheiros públicos com campanhas eleitorais antecipadas, na sequência de discursos pouco comedidos do presidente.
Mais recentemente, a oposição começou a analisar as condições políticas de impeachment (demissão do presidente), depois de ter concluído pela existência de fundamento jurídico, embora haja opiniões divergentes quanto a esta questão. Embora as opiniões dos parlamentares se dividam em meio por meio, a popularidade de Lula da Silva decresce a olhos vistos.
A ingovernabilidade é um espectro cada vez mais próximo.
O cerco a Lula aperta-se de forma inexorável.
Sem saber o que há-de fazer, completamente à deriva, Lula da Silva ora se remete para um distanciamento comprometedor, costas viradas para o partido que fundou, o PT, ora explode em desbragados discursos populistas, como aquele em que declarou que "se houver reeleição, eles terão de me engolir outra vez". A situação do país desaconselha tamanhos rasgos de arrogância.
Num pronunciamento feito pela televisão no último dia 12, o presidente disse ter sido traído por práticas que não conhecia. Não mencionou nomes. Pediu desculpa ao país e incentivou o governo e o PT a fazerem o mesmo, como se ele próprio não fosse PT e governo.
O discurso não convenceu ninguém. As entrevistas de rua revelaram um povo desiludido e descrente, fazendo demasiadas perguntas, perguntas sobejamente incómodas para o gosto do governo.
A classe política reagiu mal. Se houve traição, quem traiu? O próprio presidente do PT referiu que as palavras do Chefe de Estado não chegam para debelar a crise.
Lula passou o dia de sábado 13 a jogar futebol no seu refúgio de férias. Na próxima segunda-feira reunirá o gabinete para discutir a crise.
Tudo muito lentamente e sem empenho, como quem está por completo inocente, ou como quem já se apercebeu de que tudo se encontra perdido.
É voz comum e aceite que Lula da Silva de inocente nada tem.
Talvez lhe reste a esperança expressa nas palavras do deputado Wilmar Lacerda, presidente do PT no Distrito Federal, que, com lógica de ferro, sentencia: "se há 30 anos isto se faz e nunca ninguém foi punido, então não é crime".