A imprensa regional e local, principalmente sob a forma de semanários e mensários, brota no Brasil como cogumelos em chão húmido.
No entanto, nem toda cumpre o papel a que se destina de forma pedagógica e ética, umas vezes por demagogia acomodatícia, outras por pressão do capital.
No primeiro caso, é manifesta a responsabilidade absoluta do jornalista. Demagogia é algo de que o leitor não precisa. Ao contrário, revelar a verdade de forma transparente e sem reservas, dar aos factos o nome adequado, atribuir aos acontecimentos um relevo de justa medida, ignorar interesses comprometedores constituem pilares da própria informação. Por outro lado, acomodação é preguiça, e preguiça e jornalismo são incompatíveis. Jornalismo é acção, é trabalho, é disponibilidade de 24 horas por dia.
A pressão do capital pode ser forte, sem dúvida. Mas não é menos verdade que, muitas vezes, se invoca a pressão do capital para camuflar preferências por determinada linha editorial, iludir a falta de competências e justificar a demagogia e a acomodação acima referidas.
Cabe aqui fazer uma reconhecida vénia àqueles jornais e revistas que, por esse mundo fora, com destaque para Portugal e Brasil, constituíram uma ponta de lança no combate pela liberdade de informar no tempo das ditaduras.
Se não foram muitos no cômputo geral, foram bastante em qualidade para merecerem o nosso reconhecimento e homenagem, e o nosso agradecimento, quer pela informação, quer pela coragem, quer pelo exemplo de verticalidade.
Muitos, e isso é modelar, passados os tempos de vicissitude em que viveram, em que alguns deles, até, foram criados, souberam adaptar-se à nova situação, à situação de liberdade, e com as novas regras continuaram a fazer bom jornalismo.
Escuso-me de nomear cabeçalhos, não vá esquecer injustamente algum. Mas não será difícil, pelo menos aos da minha geração, recordar títulos que ainda hoje podem servir de ensinamento para a prática da respectiva deontologia.
Quando aparece na praça um novo jornal, empolga. Será um novo jornal, ou um jornal novo? O público pergunta-se "quem é" e "ao que vem"; "que diferenças traz em relação aos que já cá estão". Infelizmente, com alguma frequência as respostas saldam-se por um desengano.
Numa pequena cidade litorânea perto da capital de um estado do sul, cidade de gente pacata, três jornais disputavam semanalmente a atenção e a preferência dum potencial público dentre pouco mais de 20 mil habitantes.
Jornais de pouca qualidade, feitos quase só por desconhecedores das regras da escrita, em particular da escrita jornalística, beliscavam-se mutuamente sempre que a oportunidade surgia ou a conseguiam criar.
A um deles atribuía-se, não há muito tempo, a difusão de calúnias a um locutor do rádio local, de que a Redacção nunca se retratou, mesmo depois de provada a inocência do ofendido. Por ironia, o seu nome evocava directamente aquilo que de mais nobre o jornalismo tem, e que é a verdade.
Outro dizia ser o único representante da informação naquela terra. Como é de supor, as suas notícias numa comunidade tão pequena não seriam substancialmente diferentes das dos outros dois, tanto mais que nenhum deles saía dos limites informativos do perímetro do município.
O terceiro vivia à custa da publicidade que a autarquia lhe encomendava, por vezes disfarçada de notícia, e do jornal paroquial que acompanhava a edição.
Tinham todos o mesmo preço, e apelavam à população para que se fizesse assinante. As vantagens traduziam-se na participação em concursos obtusos, ou em qualquer outra actividade não menos apatetada. No entanto, todos eles, também, eram distribuídos gratuitamente em pontos estratégicos, como cafés, restaurantes, farmácias, terminal rodoviário. Curiosamente, em relação a um, feitas as contas, sairia mais cara a assinatura do que a compra avulsa. Nunca entendi esta estratégia nem indaguei das suas razões.
Todos estes jornais, vamos continuar a chamar-lhes assim, para além da semelhança narrativa a que a pequenez da praça os obrigava e a que a falta de competências os limitava, igualavam-se num ponto: dispunham de uma rubrica de fofoca em página própria com redactor de serviço, impunemente escondido atrás de um pseudónimo de sexo oposto.
Fofoca, toda ela é baixeza. Mas nas três publicações competia-se não tanto pela vulgaridade, mas pela sordidez, muitas vezes a roçar a infâmia, numa linguagem que em nada honrava quem escrevia, não beneficiava quem lia e aviltava os visados.
Tive oportunidade de falar com o director e proprietário de um dos periódicos, manifestando a minha estranheza e repulsa pela existência de tal página. Respondeu-me, falsamente contrafeito, que sem aquela página o jornal morreria. Era uma exigência do público. Alguns anunciantes só compravam espaço naquela página. Engoli em seco.
Um dia surgiu um novo jornal na cidade. Apoiado a uma empresa de radiodifusão que também ali tinha estúdio, afirmava em editorial que surgia pela necessidade de modificar o panorama informativo da comunidade. Como cidadão, aplaudi.
Vinha realmente diferente, mais jornal, com rubricas que se dirigiam ao interesse dos potenciais leitores, sem bajular a autoridade política, a influência religiosa, o poder do capital, ou a vaidade dos notáveis da terra, conduta a que nenhum dos outros se furtava.
Embora sem um esquema de edição completamente definido, com vestígios, ao longo das várias edições, de uma busca de si próprio, numa coisa era completamente diferente dos outros: não se metia na vida alheia, nem procurava explorar o fácil, o imediato, o primário para atrair leitores.
Assim passaram 4 semanas.
A partir da quinta semana, começou a inserir um oitavo de página dedicado ao elogio da mulher. Mas bem depressa esse elogio se passou para o lado da divulgação por foto de belezas femininas locais, desnudadas e expostas de forma ostensiva. Uma cedência de mau gosto, mau indício e mau agouro.
E na última semana em que o li, antes da deixar a cidade para trabalhar no Nordeste, escarrapachava em toda uma meia página interior um novo assunto: fofoca, a depreciativa e corrosiva fofoca, com redactor de plantão impunemente camuflado por um pseudónimo, tal qual os outros congéneres, igual a eles na devassa e na acusação sem provas.
O novo semanário que tão entusiasticamente pretendia modificar o panorama informativo daquela cidadezinha acabou por se render, também ele, às "exigências dos leitores", isto é, sucumbiu à demagogia e renegou o seu papel educativo no que toca ao respeito pela intimidade e privacidade de cada um e ao cultivo do civismo e da cidadania na comunidade.
Não passou, afinal, de um exemplo desonroso de que de boas intenções está certa imprensa cheia. Ou será que nem de boas intenções se trata?
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