CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quinta-feira, julho 07, 2005

A GLOBALIZAÇÃO DA IRRESPONSABILIDADE

No meio das explosivas notícias políticas do Brasil, servidas todos os dias com abundância e detalhe, a notícia da explosão de um telefone no bolso de um cidadão brasileiro não é menos explosiva também.
O relato foi feito por uma cadeia de tv no noticiário da noite da passada terça-feira, dia 5, ao correr da locução, integrado em outras breves, seco, sem gastos de tempo com pormenores ou comentários.
Para quem se habituou, como a maioria dos utilizadores, a conviver intimamente com aquele instrumento, seja no trabalho, seja no recreio, pode passar despercebido o real perigo que ele parece representar.
No Brasil conhecido como celular e em Portugal como telemóvel, não tem sido objecto de este tipo de protagonismo. Ou antes, a haver esse protagonismo, não tem sido divulgado com frequência, ou tem-no da forma suave e veloz como a que ouvi anteontem.
Tal silêncio corresponderá a uma real raridade de casos semelhantes, ou terá por detrás um especial cuidado em não ferir susceptibilidades no capital de multinacionais?A própria imprensa parece estar mal informada quanto ao assunto. Procurando esmiuçar o caso noutros órgãos de informação, deparei não com essa ocorrência mas com outra, noutro ponto do país, em que se dizia que era caso único. Pelos vistos, já estávamos no segundo. Ao continuar as buscas descobri outras três situações no território brasileiro. Entretanto, tive conhecimento de duas encontradas na Holanda e uma última, mais recente, no Vietename.
A notícia de terça-feira acompanhava-se de uma curta imagem da coxa da vítima, com queimaduras de primeiro grau, e terminava dizendo que o fabricante, cuja marca era revelada, já se disponibilizara a pagar as despesas hospitalares.
E pronto. Assim se dava o assunto por encerrado, provavelmente com o mesmo à-vontade com que se anunciaria o pagamento das despesas com o funeral, caso a pessoa tivesse morrido.
Bom... em caso de morte, talvez o fabricante fosse um bocadinho mais longe e desse, generosamente, uma indemnização à família. Assim todos ficariam satisfeitos: o fabricante, sem responsabilidade civil; o governo, sem responsabilidade tutelar; o povo, tranquilo porque tinha sido feita justiça e porque entre os familiares e amigos nunca explodira nenhum telefone de bolso; a família, conformada porque, afinal, tinha corrido dinheiro – e a voz do dinheiro soa cristalina.
Mas não é assim tão linear. Fabricante e vendedores têm a obrigação de fornecer, de forma inequívoca, instruções quanto à segurança de pessoas e bens na utilização desses aparelhos. Depois, em situações semelhantes, o fabricante deveria abrir um inquérito e, em caso de declarada deficiência do produto, retirá-lo imediata e integralmente do mercado. Por seu lado, os utilizadores deveriam exigir do fabricante, ou do seu representante no Brasil, uma revisão gratuita do equipamento com certificado de garantia. Finalmente, o governo deveria exigir do fabricante um compromisso quanto aos equipamentos à venda.
Há alguns meses, já tinham surgido na imprensa especializada algumas notícias quanto a defeitos de fabrico dessa marca, que tornavam os aparelhos capazes de comportamentos anómalos nos países tropicais. Mas não foi dado qualquer eco aos avisos.
Quando coagido, o fabricante tem apresentado algumas justificações para os casos, como seja a utilização de baterias não originais. Ora, é sabido que as baterias de fábrica são, aproximadamente, 10 vezes mais caras do que as similares, e nada decorre da legislação que desautorize a venda destas últimas. Por outro lado, o argumento do fabricante não colhe inteiramente, na medida em que, num país europeu em que ocorreu uma das explosões, uma associação de defesa dos consumidores declarou que a bateria do aparelho acidentado era genuinamente original.
Tenho a certeza, e não estou nisso sozinho, de que o procedimento teria sido radicalmente diferente no país do construtor, um país do norte da Europa, região onde estes assuntos são tratados com uma seriedade que permite ao cidadão dormir sem preocupações. De resto, já foi bem diferente noutros países onde o mesmo aconteceu.
Mas a filosofia desses grandes empórios não é a mesma para os países que os ricos rotulam de terceiro mundo. Aqui, é irrelevante para o construtor que 1 ou 10 telefones se incendeiem espontaneamente. Não tem expressão numa área de cerca de 180 milhões de habitantes como é o Brasil. Interessa apenas que a sua imagem não saia beliscada. Para isso, as indemnizações que comprem o silêncio, silêncio que tem a seu favor a gratidão da vítima que, apesar de tudo, está feliz porque o acidente só a feriu, não a matou.
No Brasil, país em que cidadania é um conceito vago sem expressão prática, em que reclamar os direitos provoca indigestão, em que mete medo exigir o cumprimento da lei, quando a lei existe, claro, só podemos ficar espantados por não haver mais acidentes como estas explosões de telefones de bolso, perante a indiferença generalizada e o mutismo cúmplice de quem tem por dever, respectivamente, prevenir e denunciar tais acontecimentos.



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