Comboio Lisboa – Porto. Há quem lhe chame o comboio dos executivos e dos homens de negócios. Para mim é um comboio cómodo e rápido, dentro do possível e dos possíveis atrasos. A coxia divide cada carruagem numa fila de lugares individuais, de um lado, e de lugares duplos, do outro. Todos eles são numerados e obrigam a reserva prévia, reserva que implica o pagamento de uma taxa incluída no preço final do bilhete.
Durante a viagem, um revisor (ou fiscal, não me recordo do nome que lhe dão na terminologia da CP) percorre várias vezes o comboio e verifica, junto de cada novo passageiro, a posse do título de transporte e a correspondência entre o número do lugar e o do respectivo bilhete. Digo isto porque já tive oportunidade de presenciar, por parte desta autoridade, o reenvio de passageiros para as carruagens que lhes foram atribuídas e que não eram aquela em que se encontravam. O procedimento parece-me fazer todo o sentido, justificando, assim, a existência de lugares marcados pelos quais se paga e que é uma imposição da própria CP para, julgo eu, evitar atropelos e confusões e proporcionar maior conforto e segurança aos passageiros. Mas a minha experiência de utente de longa data da CP e, em particular, deste tipo de comboios, leva-me a crer que há trabalho desnecessário, taxas desnecessárias, lugares marcados desnecessariamente. Pouparia a Companhia e pouparíamos nós, clientes, se o controlo se limitasse à entrada dos passageiros porque, dentro do comboio, reina um certo save us, uma espécie de salve-se quem puder civilizado.
A minha mais recente viagem foi o paradigma que me levou a pensar nestas coisas.
Quando me instalei, os dois lugares à minha frente, do outro lado da coxia, estavam ocupados por um casal. Ela, de estatura média para as da sua geração, elegante nos cinquenta anos que me pareceu ter, vestia de forma agradavelmente desportiva. Todo o seu aspecto era cuidado e fazia transparecer, de forma discreta, desafogo de vida. Nele também era evidente esta particularidade; o casaco de bom corte condizia na cor com a camurça dos sapatos e ambos se harmonizavam com o tom das calças de tecido leve; um pouco mais velho, o porte elevado, a postura, o cabelo completamente branco evocavam uma aristocracia contente a que não faltava, como adorno único, um anel de monograma no dedo mínimo da mão esquerda. Lia a página desportiva dum jornal. Ela folheava uma revista. Na mesinha de apoio à frente dele, bem à mão, repousavam um telemóvel que acariciava despreocupadamente, dois maços de cigarros americanos e um isqueiro barato de cor garrida. Restos de outros jornais cobriam o espaço livre da mesa. Não falavam, cada um entretido na respectiva leitura. Percebia-se que ambos eram o tipo de pessoa que cheira bem, duma fragrância suave e própria, semi-escondida, mais sugerida que revelada mas de forte personalidade.
Ao passarmos a nova estação Oriente reparei no cenário, alargado pela entrada, em Santa Apolónia, de outros passageiros, ignorados por mim devido à observação a que me dedicara. O casal mantinha-se na sua actividade interiorizada.
Outras estações, entradas e saídas. Entroncamento. Gente que pára no corredor à procura de lugares, dos seus lugares, ocupados. Perguntam ao casal se o lugar deles é ali. Dizem que não. Os dois esboçam um movimento, os outros de pé, à espera. Os dois simulam recolher o estendal sobre a mesa. Ela levanta-se e estica-se para a bagageira. Os passageiros usurpados querem é sentar-se e há bastantes lugares vagos. "Deixe lá. Não tem importância. Ficamos aqui". O homem acomoda de novo a companheira com pequenos toques de telemóvel nas formas redondas das coxas, como que empunhando uma pequena vara para levar ao sítio desejado um animal de estimação. Ela, que já o afastara um pouco para poder sair, volta a sentar-se, volta à sua revista. Os novos passageiros instalam-se e, daí a meia hora, são corridos pelos proprietários dos lugares que tinham ido ao bar. Procuram outros lugares vagos sem se lembrarem que os seus, legítimos, pagos e reservados, estão ali, basta reclamá-los. Sem se lembrarem, ou talvez porque o cheiro do casal seja de tal forma agradável que intimida sem se dar por isso. Chegamos a Coimbra. Dois jovens pretendem os seus lugares, ocupados indevidamente pelo casal e pelos outros que desistiram da reclamação e se sentaram onde havia vaga. A teia de lugares está de tal modo enredada que os jovens desistem ("Deixe estar, não nos importamos de ficar aqui"; talvez faça parte dum manual distribuído pela CP) e ocupam os primeiros assentos livres que encontram. Agora está tudo irremediavelmente baralhado. Parece perceberem isso os passageiros que subiram em Aveiro, que olham para os lugares que seriam os deles e passam à frente. O casal sai em Vila Nova de Gaia, como faziam dantes os que temiam atravessar a ponte metálica a esboroar-se em cada segundo. Sai com a dignidade, quase majestática, dos da sua classe. Sai com o ar simples de quem é superior mas sabe estar com as classes de baixo. Sai com o ar de quem é capaz de ocupar um lugar que não é seu com o mesmo à-vontade e naturalidade de quem puxa um autoclismo. Saem, eu fico, sigo viagem.
Não tem importância, não faz mal, fico-me por aqui...