CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

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sábado, fevereiro 26, 2005

RECIFE, CLIMA E CHEIROS

Meses atrás, um jornal do Recife alertava para o facto de Pernambuco ser o único Estado que não acompanhava o desenvolvimento global do país. Recentemente, o Presidente Lula da Silva declarou que era preciso fazer de Pernambuco e, de um modo geral do Nordeste, o que o Presidente Roosevelt fizera do vale do Tenessee, ou seja, arrancá-lo da tradicional pobreza, da mal escondida miséria, e desenvolvê-lo.
Este deficiente desenvolvimento projecta-se em vários patamares do cenário social, com repercussões negativas sobre a qualidade de vida da população. Por outro lado, ele é o resultado de vários parâmetros, quer de natureza física da região, quer estruturais dos próprios habitantes, como indivíduos e como grupo.
No Recife são duas horas de uma tarde de canícula ardente da estação (mais) quente do ano. Apesar da proximidade do oceano, os termómetros não descem dos 33 ° C. A humidade a 80% mistura-se com o suor e forma uma película que adesiva as roupas ao corpo. Escrevo com uma bandana atada à volta da cabeça para suster o suor que brota em cachoeiras da testa, das têmporas, da nuca e do cabelo ensopado, mas o lenço satura e transborda para os ombros, para as costas e o peito, invade os olhos já doridos pela luz crua, de aço, e os olhos não conseguem ver mais através das lágrimas de fogo. O papel fica enodoado de pingos grossos. A mão gruda-se à folha e recusa-se a acompanhar o deslizar da caneta. Lavo as mãos mais uma vez, como se tivesse rituais de limpeza.Olho para o calendário, sem esperança: será assim a maior parte do ano, com previsão dos cientistas de que as temperaturas poderão subir ainda mais, devido ao aquecimento global. O Brasil assinou o Protocolo de Kyoto mas sofre os efeitos da globalização.
Lá fora ouve-se um silêncio distante, pesado de calor. O trânsito afrouxou. Os autocarros passam devagar, quase vazios.
As praias urbanas não são convidativas nesta altura: superpovoadas e não permitindo duas braçadas mais afoitas sem que se corra o risco do ataque de tubarões que, onde não há recifes, avançam destemidos quase até à linha de água. Como se não bastasse, algumas dessas praias são poluídas por resíduos fecais microscópicos, provenientes de unidades hoteleiras que bordejam a marginal. Resta o passeio, a pé ou de bicicleta, ao longo da avenida Boa Viagem, ao longo da costa; mas a estrada parece uma bigorna e nem isso já resta. Então, quem não tem obrigações de profissão que o prendam à empresa ou à repartição, à loja ou ao serviço público, ao restaurante ou à escola, fica-se por casa, abanado pelo ventilador, fresco faz-de-conta, ou pelo ar condicionado, que seca e degenera as mucosas. Tenta-se o terceiro chuveiro do dia para se verificar de seguida que, mal se acaba, a pele já pica de novo pelo suor que goteja.
A escrita amolece e espera pelo pretexto da noite. Mas a noite não é fresca se fechada nas paredes que absorveram todo o dia o fogo a pino; e depois vêm os mosquitos sedentos do sangue em brasa que possa alimentá-los; às vezes trazem dengue, felizmente malária já não; besunta-se o corpo com repelente viscoso, ou queima-se um químico qualquer, mais prejudicial, a longo prazo, do que a própria picada do insecto. A noite, às vezes, é fresca lá fora, mas, lá fora, há perigos na noite...
Quando chove, o tempo não refresca. O calor sobe do chão em ondas vulcânicas e solta o cheiro amadeirado da terra molhada. Se a bátega se prolonga, algumas artérias inundam e o trânsito torna-se caótico. Os rios ganham a cor terrosa das lamas arrastadas. Chuvas tropicais, intensas, pesadas, violentas, geralmente breves, mas com possibilidades devastadoras.
Todos se queixam quando o calor aperta um pouco mais. Apesar da constância, ainda ninguém se habituou a ele. As pessoas tornam-se irritáveis, e as bactérias, viajando na poeira em suspensão, provocam infecções e disfunções nas vias respiratórias. A procura de hospitais e centros de saúde aumenta.
Não apetece a cama, onde os lençóis bem depressa ficam empapados, com cheiro acre. A rede convida à preguiça, mas nada tão bom como uma boa cama. Pouco depois das cinco da manhã é dia cheio. Vai apetecer uma sesta depois de almoço.
Nos bairros mais antigos ou mais pobres da cidade o cheiro é inconfundível. Senti-o pela primeira vez em Cabo Verde, em 1970, e, logo a seguir, na Guiné-Bissau. Tornei a reconhecê-lo em Luanda, em 1986. Um cheiro forte que se agarra à pele, à roupa, a cada porção do espaço próprio. É uma mistura de decomposição de seres que foram vivos, animais e vegetais, com dejectos irreconhecíveis, águas salobras, cascas e caroços de frutos tropicais e carapaças de caranguejo e camarão. Conforme as áreas, assim predomina um destes elementos.
Nestes bairros, águas de cor suspeita, com laivos irisados, escorrem pelas valetas, a céu aberto, e estacam à entrada das sargetas entupidas de lixo e terra.
Cheiro perpétuo, enquanto se perpetuarem os traços de terceiro mundismo que, como o calor destrutivo, pesam, ano após ano, sobre o quotidiano dos cidadãos.



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