Buzinas festivas em cortejo.
- Outro?... Fazem bicha...
- Então... Hoje eram três...
- Em tua casa vai também haver um, qualquer dia.
- Pois vai. Mas ele ainda tem de ir lá pedi-la ao meu pai. É assim... à antiga portuguesa.
- Eu também gosto assim. Mas o meu homem é mais moderno e não liga a essas coisas...
As três mulheres que entabulam esta conversa estão sentadas perto da minha mesa. A que tem o homem "mais moderno" deve estar a meio dos quarenta. Outra é uma adolescente. A terceira irradia uma inquietação de fogo espicaçado pelo calor de Julho; usa uma saia até aos pés e só se dá pelo rasgo no pano, quase de alto a baixo, porque sabe usá-lo de um modo natural e simples, talvez por isso atraente, na forma como traça e expõe uma perna bonita, branca e lisa, macia, onde as mãos de um modelador podem prolongar-se pelos olhos, devagar, nas curvas suaves.
As três mulheres levantam-se e eu passo a ser dono e senhor deste espaço que me abriga do sol por um telheiro aberto em balcão sobre a água a uns cinquenta metros lá em baixo.
Tenho uma vista panorâmica da barragem de Ferreira do Zêzere, emoldurada por floresta ainda impoluta. De um ponto da margem que um erro de perspectiva transforma em círculo, penetra na água um pontão estreito. Aí recebem albergue meia dúzia de canoas cor de terra, três pequenos barcos de recreio, de fibra plástica, e o "Maria Odete", embarcação um pouco maior para passeios na albufeira. O piloto está sentado ao leme, num uniforme branco, lavado e passado a ferro de fresco, a contrastar com a cor e os vincos do rosto curtido como o de um velho lobo do mar. Mas não é para o mar que ele olha, se mar fosse o espelho líquido que quase não reflecte o tremeluzir da brisa. Ele olha para o caminho de cascalho batido pelo rodado dos jeeps que rebocam motas de água, esses trastes modernos que vieram estragar-lhe o gosto do passeio e o sossego do sítio. Olha para o caminho que desce até ao molhe. O negócio não chega. É Sábado, o tempo está de maré, mas não há candidatos à viagem. Nesta esplanada rústica, autêntica, servem-me uma salada de atum em travessa que dá para três ou quatro como eu. Ataco-a a medo, horrorizado com o tamanho e já meio nutrido com um saboroso queijo de cabra das redondezas.
À porta da casa que é habitação e, ao mesmo tempo, café e restaurantezinho caseiro, uma fatia gorda de azulejos diz que se chama "Casa da Inveja". O segredo deste baptismo vem de além de três gerações. A única origem conhecida hoje fala de uma quinta chamada da Inveja, submersa aquando da construção da barragem. Subida a casa por via das águas, o proprietário, que era o da quinta também, salvou-lhe o nome da enxurrada. Para além do nome, desenhado a azul vidrado sobre o leitoso da cal, um desejo: "que Nossa Senhora do Pranto proteja para sempre a Casa da Inveja".
Visitei a aldeia onde, apesar da conservação de um traçado rural genuíno, o alumínio vai corroendo a velhice serena como moléstia resistente ao bom gosto.
Dornes, a aldeia, santuário de Nª Sª do Pranto, cheira a cantigas de amigo de D. Dinis. As gentes de cá assim a inscrevem nos tempos, embora com a convicção desinteressada de ouvir dizer que se diz. Há testemunhos medievos, uns autênticos, outros redesenhados nos sulcos difusos da tradição. Ao trepar as ruas curtas e íngremes é possível ver, em fachadas, em adornos, numa chaminé e no calcetado duma escadaria, a cruz de Cristo ao lado da cruz dos Templários. Um painel de azulejos reporta a Senhora do Pranto a mil trezentos e qualquer coisa, representando-a como uma pietà, réplica da escultura de madeira pintada que referencia a capela do sacrário da igreja matriz. Dou por mim a comparar a beleza desta, de madeira, com a da outra, a italiana, de mármore, e verifico que consigo comparar porque há beleza em ambas. Nem a uma nem a outra chamaria pietà. Senhora do Pranto, sim. Parece-me mais apropriado. A igreja é grande para o tamanho da povoação. Como muitas construções deste tipo, passou por várias épocas em que os estilos então dominantes deixaram a assinatura. Numa colina, destaca-se das casas envolventes mas mantém com elas uma cumplicidade na singeleza do traçado. Junto ao portal da entrada mostra uma pequena lápide com um texto medieval. O interior é amplo. O tecto de madeira ostenta um brasão de nobreza antiga, aparentemente restaurado de fresco. Logo a seguir à capela da pia baptismal, de paredes forradas a azulejo de gosto duvidoso, a fazer lembrar os de algumas cozinhas, sobressai, a meia altura, um pequeno órgão de tubos. O púlpito parece ser a peça mais antiga; mantém o relevo da pedra intacto mas só raras escamas permitem adivinhar o colorido que lhe deu vida. No altar-mor ressalta a talha dourada e as paredes estão forradas de azulejos do sec. XVII. Parte do corredor central da nave é de lajes, algumas com inscrições do sec. XIV.
Um pequeno órgão de cinema, talvez o mesmo que anima as festas laicas da paróquia, entoa uma marcha nupcial.
Os noivos são beijados, abraçados, filmados e fotografados. Reparo agora bem neles. Por favor, nunca mais me digam que toda a noiva é bonita. Digam, apenas, que é noiva... e deixem-me pensar o que sentir...
O coro está decorado com grandes faixas brancas. Os extremos dos bancos sustentam laçarotes cor de pureza, de plástico (os laçarotes, a pureza não sei), daqueles que as floristas usam para rematar os ramos.
Deixo o templo. De um dos flancos eleva-se uma antiga torre (sec. XI-XII), pentágono irregular, outrora torre de vigia, hoje transformada em torre sineira.
O repicar alegre dos cinco ou seis sinos anuncia outro casamento. É assim. Uns atrás dos outros, em bicha, como na caixa de um hipermercado onde se vai comprar a felicidade para sempre. Afinal foram sete. Melhor dia para o padre do que para o marinheiro...
Os automóveis amontoam-se e atravancam as ruas, já de si estreitas. Todos estão embandeirados com o já habitual pedaço de tule branco. Os dos noivos, geralmente Mercedes, são decorados mais profusamente, com fitas e flores por dentro e por fora. Um deles é traçado por barras com andorinhas e votos de felicidades para os noivos, em francês... Noutros, o conjunto de enfeites é tão dúbio que, junto da igreja, não se sabe se são carros de noivos ou carros funerários.
Só às três da tarde se ouvem outra vez os pássaros e o restolhar de perdizes e répteis nos arbustos, quando a última caravana deixa a aldeia e regressa a paz interrompida.
Faço-me ao rumo do meu destino. Tenho pela frente oito quilómetros de estrada de montanha, sempre a subir. O sol cavalga as sombras quase a pino e o calor que desfaz o alcatrão é o mesmo que nos derrete. Nos derrete, não: me derrete; o caminho em ziguezague constante não me traz vivalma. Por companhia visível só floresta e mato, dum e doutro lado da rota. Por vezes, alguns cumes distantes conseguem espreitar-me por entre a polifonia do verde da folhagem. Palmilho ao compasso do bastão que cortei com a navalha de campo antes de iniciar a subida. A mochila da água sobre o peito equilibra a das costas, pequena e leve, para explorações curtas, onde já seguem alguns ramos bons para entalhe e algumas aparas de rocha de brilho estranho, dourado, para identificar.
Todo o corpo, bio e psico, está mobilizado para o esforço. Sinto-o. Basta pensar num órgão, num pedaço de pele, numa réstia de ideia para saber exactamente como estão a contribuir. As pernas rangem de tanto esticar as fibras dos músculos. Rangem e doem; mas pedem que não pare, que não pare, que não pare ainda, nunca a meio da subida, só depois.
O hálito da tarde tem cheiro de fornalha; ouço o calor estilhaçar troncos secos de há muitas gerações. Os meus pés absorvem a vibração tranquila da sesta da terra; revigoram e animam-se, tão sôfregos de marcha que me parece terem-se desligado de mim e eu deslizar em algodão de nuvens. Mas o meu peito é uma imensa caldeira com os cilindros dos pulmões a trabalhar ao máximo e o vapor a expandir-se com apito de locomotiva pelas narinas dilatadas. O conta rotações nos pulsos parece querer saltar e o coração, ao ritmo de bigorna incandescente, a explodir, abre auto-estradas de vida no que são simples veredas de tecido frágil. Tenho a pele liquefeita, toda ela coberta de ondas que refrigeram e vão limpando a poeira trazida pelo calor. Da testa escorrem cascatas que me queimam os olhos e se escapam como lágrimas pela cara. Provo o meu gosto. Sabe-me a mar.
Neste momento sou mar. E sou fogo, e ar, e terra, e tudo o que há acima e abaixo dela. A Natureza envolve-me e, nesse abraço de amante apaixonada, dissolve-me em si, esvai-me, transforma-me e devolve-me à Vida em sintonia comigo. Subo, subo sempre. A estrada, sem sombra a bordejar, não promete descanso. Oiço o silêncio que me observa, espantado. Então saio de mim e venho ver-me.
Sou um ponto, um pulsar do universo num espaço sem dimensões em que o tempo não existe. O meu movimento é o do próprio universo. A minha idade é a do próprio universo. Trago uma máscara talhada a fogo em pedra, retesada do esforço para chegar lá acima, mas o disfarce de dor é um retrato de luta e de vitória. Olho-me por dentro à procura de mim. A angústia é uma recordação longínqua e esbatida como os traços da vazante vistos do alto da falésia.
Sou um buraco negro, algures, algures onde as coordenadas são indefinidas e permanecem apenas até outra alvorada. Absorvo a luz que me rodeia e retenho a memória do que passa ao meu alcance. Nada sai de mim até ter fundido a luz e a memória num núcleo compacto de novas qualidades; depois, a instabilidade desse corpo estranho faz explodir o invólucro incapaz de o conter e espalha estrelas cadentes que vão povoar o espaço sideral. De uma delas nascerá outro buraco negro.
Da cratera escura, desenhada a lápis de diversos matizes, emergem teias de silvas que me conduzem o olhar a uma casa abandonada, ainda bela, apesar da ruína. Avisto as primeiras habitações da aldeia. O sol no branco limpo destaca-as das sombras espreguiçadas por canteiros e pedaços de rua. O terreno agora é plano, acabou a subida, cheguei ao cimo. O esforço desfez-se numa pasta de cansaço que vai fluindo e pesando no corpo como metal derretido.
Da porta de um café, através das fitas pendentes que guardam a sua intimidade, um homem e uma mulher falam das vidas que passam, daquilo que ainda não sabem um do outro desde ontem, enquanto a televisão anuncia qualquer novo produto que não lhes desvia o rumo do assunto. Cheira a lavado recente. Há manchas frescas de fundo de balde à volta do portal e, encostada à ombreira, uma esfregona seca.
Sigo sem ver gente e chego ao centro deserto do povoado. Cai no largo uma musiquinha de cassete de feira, com langor de ciúmes duma outra mas, porque a porta se fecha outra vez, fico sem saber como surgiu ela, assim, a estragar a vida daquele lar; de debaixo de um alpendre de flores amarelas, abertas à luz, vejo sair um par de namorados. Apresso-me e consigo alcançá-los. - Como se chama esta terra?
Sem saída, porque é o meu destino, sento-me no chão a descansar à sombra do coreto.